quinta-feira, 16 de abril de 2009

DE CASO COM A DITABRANDA

Como a Folha de S.Paulo demonstrou ter telhados de vidro e provocou a maior crise de credibilidade em toda sua trajetória

Por André Cintra - Revista Caros Amigos

No dia 24 de fevereiro, tão logo soube que o Movimento dos Sem-Mídia (MSM) tinha convocado um protesto em frente à Folha de S.Paulo, o representante comercial Wilson Cunha Júnior, de 42 anos, tomou a decisão de participar do ato, custasse o que custasse. Não deu a mínima para a distância que separava sua casa e o prédio do jornal — algo como mil quilômetros. Wilson mora em Goiânia, onde trabalha por conta própria. Sem saber como chegar à sede da Folha, entrou em contato com Eduardo Guimarães, presidente do MSM, que tentou imediatamente dissuadi-lo. “Isso é loucura — você está tão longe. Não, não venha”, rogou Eduardo, por telefone. “É claro que eu vou. A responsabilidade é toda minha”, rebatia Wilson.

Depois de desembolsar R$ 128 na passagem de ônibus Goiânia–São Paulo, ele iniciou sua viagem às 16h30 da sexta-feira, 6 de março. A previsão era chegar ao Terminal Rodoviário Tietê, em São Paulo, às 7 horas do dia seguinte, mas um incidente na estrada retardou o desembarque em duas horas. “Desci do ônibus e fui logo ao guichê. Comprei passagem de volta para 5 horas da tarde”, conta Wilson, que gastou aí mais R$ 139 — e sem reclamar. “Olha, se houvesse ato todo mês, eu iria todo mês a São Paulo. Pode ser na Folha ou na Globo. Meu problema maior é contra a ditadura da mídia.

Uma meia-dúzia domina e determina tudo que a gente lê.” Da rodoviária, Wilson entrou no metrô, atravessou oito estações e, às 9h50, um sábado, atingiu a alameda Barão de Limeira, onde viu centenas manifestantes, além de dezenas de cartazes e faixas. “Foi um alívio. Não perdi nenhum minuto.”

O que motivou a pequena epopeia desse animado goiano e de outras 500 pessoas, aproximadamente, até o prédio da Folha foi o que Wilson qualificou como “um tapa na cara das pessoas que viveram a ditadura no Brasil”. Tudo começou com o editorial “Limites a Chávez”, escrito por Vinicius Mota e publicado na edição de 17 de fevereiro. Aos enxovalhos de praxe contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, o jornal acrescentou um comentário sobre o governo dos generais-presidentes brasileiros. Segundo o editorial, “as chamadas ‘ditabrandas’ — caso do Brasil entre 1964 e 1985 — partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça”.

A relativização do regime é um fenômeno da Folha nos anos 2000. O diretor editorial, Otavio Frias Filho, também chamado de Otavinho, e o historiador Marco Antônio Villa, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), são expoentes desse movimento. “A ditadura militar foi alvo também de um esquema maniqueísta”, escreveu Frias Filho em 2003. “A imagem que ficou foi a de um despotismo de generais que suprimiu as liberdades, governou contra o povo, matou e torturou quem resistia. Isso é verdade, mas não toda a verdade.” Sobre o fim do regime, o diretor da Folha minimizava em 2004 a pressão popular pelo voto, condicionando a volta da democracia a fatores não-políticos. “Basta verificar o crescimento econômico nos anos que antecederam a campanha das diretas: -6,3% (1981), -1,3% (1982) e -5,0 (1983)”. No texto “Ecos de 64”, Frias Filho Escreve: (...) “fracassada, a aventura guerrilheira conferiu legitimidade ao período de ditadura nua e crua, entre 68 e 74”.

Marco Antonio Villa — que, sob encomenda, escreveu uma coleção conservadora de livros de história para o Instituto Teotônio Vilela, do PSDB — incorpora esse espírito, sobretudo quando o tema é a indenização a ex-presos perseguidos políticos. Na Folha, ele costuma entrar em cena sempre que se trata de deslegitimar a resistência armada ao regime militar. “Nos últimos anos, foi se consolidando uma versão da história de que os guerrilheiros combateram a ditadura em defesa da liberdade. (...) É urgente enfrentarmos essa falácia”, escreveu, em 23 de maio de 2008, quando o tema das indenizações às vítimas das torturas e perseguições políticas estava na ordem do dia. Villa citou o “espaço democrático” dos governos Castello Branco e Costa e Silva: “basta ver a ampla atividade cultural de 1964-1968”. Para o historiador, “é fundamental não só rever as indenizações já aprovadas como estabelecer critérios rigorosos para os próximos processos”. Não é toa que a Folha recorreu a Villa para defendê-la no episódio da “ditabranda”.

Embora o Grupo Folha, adquirido pela família Frias em 1962, tenha laços históricos indisfarçáveis com a ditadura, é provável que o neologismo tenha sido publicado por descuido. Diferentemente do pai, Octavio Frias de Oliveira — que fazia questão de ler, checar, corrigir e aprovar todos os editoriais do jornal —, Frias Filho tem obsessões de outra ordem, como o controle estatístico dos erros cometidos em cada edição do jornal. “Muita gente aqui acha que o Otavinho não se preocupou em avaliar o texto do Vinicius”, conta um repórter da Folha que não se identificou para evitar represália. “Como o tema era Chávez, e a Folha tem uma posição muito clara e óbvia a respeito dele, o risco de sair alguma polêmica parecia nulo.” Eis que, dado o primeiro escorregão, o jornal precisou de três dias para cometer o segundo. Na sexta-feira de Carnaval, 20 de fevereiro, ao publicar na seção de cartas (o “Painel do Leitor”) as primeiras críticas vindas do meio acadêmico — do jurista Fábio Konder Comparato e a historiadora Maria Victoria Benevides, ambos da USP —, a Folha partiu para a baixaria. Uma “nota da Redação” qualificava a indignação desses intelectuais como “obviamente cínica e mentirosa”, uma vez que — segundo o desinformado jornal — os professores são “figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba”. Na realidade, tanto Konder quanto Benevides já criticaram publicamente o regime cubano, sendo que o jurista chegou a expressar suas críticas a Cuba no mesmíssimo “Painel do Leitor” Da abominável relativização da história, o jornal pago de maior circulação no Brasil passou a uma agressão a leitores típica da imprensa panfletária do século XIX. Frias Filho agiu como se fosse necessário um atestado ideológico para se beneficiar do jornalismo “crítico, democrático e apartidário” da Folha. Sua resposta grosseira a dois intelectuais renomados põe em perigo a imagem pluralista de uma publicação que, supostamente, exibe sem medo os seus princípios e procedimentos à sociedade e, em especial, aos seus leitores. Essa é uma marca que a Folha passou a construir no começo dos anos 80, quando passou a divulgar seu Manual de Estilo e os seus sucessivos projetos editoriais, e consolidou com a campanha publicitária em que se apresentava como um veículo corajoso e independente – “de rabo preso com o leitor”, ou seja, desvinculado de interesses políticos, econômicos ou ideológicos. Na avaliação do sociólgo Rudá Ricci, há um componente psicológico na reação – claramente desproporcional – de Frias Filho às críticas que o editorial da “ditabranda recebeu”. “Quando é repreendido por intelectuais do peso de um Comparato ou de uma Benevides, ele perde a cabeça e mostra destempero, como se tivesse sido censurado na sua juventude e na sua imaturidade intelectual”, avalia Ricci. “Assim, vai perdendo o status da kaiser da imprensa nacional”.

A revolta contra o jornal da família Frias, diluída no início, se intensificou durante e logo após o carnaval. Na internet, foi lançado em 21 de fevereiro o manifesto “Repúdio e Solidariedade” — um abaixo-assinado eletrônico que condenava “o estelionato semântico” do termo “ditabranda” e a agressão sem precedente da Folha. Na opinião de Caio Navarro de Toledo, professor da Unicamp e um dos idealizadores do manifesto, a iniciativa de fazer um abaixo-assinado on-line abriu um espaço para tornar públicos os protestos que pipocavam em grande quantidade. “Muitos colegas me encaminharam as cartas que escreveram à Folha e que não foram publicadas”, conta. “Ao lançarmos o manifesto, abrimos espaço para essas vozes críticas, que não queriam engolir a mentira de ‘ditabranda’.

O abaixo-assinado “Repúdio e Solidariedade” teve ampla repercussão na web, impulsionado por sites progressistas e blogs alternativos. Essas páginas na internet difundiram o chamado para a manifestação do Movimento dos Sem-Mídia em frente à Folha. De nada adiantaram as tentativas do jornal em minimizar o estrago, levado a cabo pelo editor de Brasil, Fernando Barros e Silva, pelo ombudsman Carlos Eduardo Lins e Silva e pelo colunista Marcelo Coelho. A poucos dias do ato do MSM, o jornalista Leonardo Sakamoto divulgou em seu blog que a Folha, nos dias subsequentes à querela, perdeu 2 mil assinantes, o que indicava impactos não só na imagem e na credibilidade do jornal — mas também no bolso. Em 5 de março, a dois dias do ato dos sem-mídia à frente da Folha, o historiador Marco Antonio Villa reapareceu no jornal com o artigo “Ditadura à brasileira”, para sustentar que o país só teve ditadura de fato entre 1969 e 1979 — a duração do AI-5. “Só pode ser ‘a democracia’ dos historiadores à brasileira”, respondeu, três dias depois, na própria Folha, o colunista Janio de Freitas. “Os historiadores à brasileira não sabem que as ditaduras vão até onde lhes é vitalmente necessário, e enquanto podem fazê-lo.” Villa sentiu o golpe e, encurralado, retratou-se no “Painel do Leitor”: “Em momento nenhum (...) defendi a ditadura militar.”

Àquela altura, o manifesto “Repúdio e Solidariedade” já tinha mais de 8 mil signatários, desde donas-de-casa até celebridades como o sociólogo Antonio Candido, o arquiteto Oscar Niemeyer e o cantor Chico Buarque. Em 8 de março, Frias Filho voltou atrás e admitiu que o termo “ditabranda” é errado, pois “tem uma conotação leviana que não se presta à gravidade do assunto”. Mas continuou a desancar Fábio Comparato e Maria Benevides, tachando-os, dessa vez, de “democratas de fachada”. No sábado seguinte, dia 14, os dois professores conseguiram um direito de resposta no jornal. “Levar mais de duas semanas para reconhecer um desatino editorial (a classificação do regime militar brasileiro como ‘ditabranda’), imputando a responsabilidade pelo episódio ao teor de nossas críticas, não parece um comportamento compatível com a ética do jornalismo”, escreveram. A Folha, porém, manteve sua postura agressiva. “Imaginava-se encerrado o episódio, mas os professores Comparato e Benevides estão empenhados em extrair dele o máximo rendimento possível”, comentou o jornal. As 500 pessoas que participaram do ato contra a “ditabranda”, às portas da Folha, demonstraram que, nessa batalha, quem ganhou foi a sociedade. Um post publicado por Flavia Brites, no blog Nas Retinas, registra um cálculo expressivo: cem blogs agregados a partir do tema “ditabranda” contabilizavam, ao longo da manifestação, mais de 60 mil visitas. Com a cobertura do ato, o site Vi o Mundo, do jornalista Luiz Carlos Azenha, registrou seus melhores índices de audiência. “Eu me atrevo a dizer que foi a primeira manifestação política convocada pela internet que terá consequências práticas para o ativismo digital”, escreveu Azenha. Foi um protesto sem panfletos ou convites impressos, mas com apoio espontâneo de entidades de direitos humanos e de ex-presos políticos, movimentos organizados, partidos políticos, jornalistas independentes, sites, blogs, e muita gente mais. À sua maneira, cada um deles mostrou que, antes das paredes envidraçadas, o que a Folha de S.Paulo tem são telhados de vidro.

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