Por Lúcia Rodrigues - Caros Amigos
A reciclagem do lixo pode ser uma fonte de geração de emprego e renda para milhares de pessoas. O governo federal disponibilizou R$ 5.9 milhões para a construção de 10 cooperativas na capital paulista, mas o projeto não sai do papel porque a Prefeitura de São Paulo emperra o empreendimento. Fotos Jesus Carlos
Viver do que os outros descartam tem sido a rotina de milhares de pessoas espalhadas pelo país e que fazem da coleta de material reciclável a fonte do próprio sustento e de seus familiares. Retirar o ganha-pão do que é jogado fora nada tem de humilhante e pode trazer dignidade para muita gente, dependendo da forma como o poder público encaminha essa questão.
É preciso o empenho das prefeituras, que são as responsáveis diretas pela destinação dos resíduos produzidos pela sociedade. Assegurar a infraestrutura básica para a manutenção das cooperativas de reciclagem e a criação de novas unidades de triagem é elemento decisivo para que esse trabalho deixe de ser penoso e adquira o status de uma profissão como qualquer outra.
Se engana quem considera, no entanto, que o lixo garante apenas a sobrevivência dos pobres. Ao contrário do que muitos imaginam, ele é fonte de riqueza para uma parcela expressiva do empresariado. Na cidade de São Paulo, duas concessionárias, EcoUrbis Ambiental S/A e Loga Ambiental de São Paulo S/A, dividem os recursos gerados pelo
espólio do lixo que é produzido pela população.
Mensalmente, a Prefeitura da capital paulista desembolsa R$ 48 milhões que são repassados a essas duas empresas pelos serviços prestados. A EcoUrbis, responsável pelo lixo das regiões leste e sul, tem entre seus acionistas majoritários a Construtora Queiroz Galvão, a mesma que participa da construção das linhas dois e quatro do Metrô paulista.
A empreiteira era uma das responsáveis, junto com a Camargo Corrêa e OAS, pela obra da estação Pinheiros do metrô que desmoronou, em janeiro de 2007, matando sete pessoas, além de destruir a moradia de inúmeras famílias que residiam no entorno da construção.
A outra concessionária, a Loga, é uma sociedade entre a Vega Engenharia Ambiental S/A, que possui 62,347% de participação acionária, e a Cavo Serviços e Meio Ambiente, que detém 37,653%. A Vega Engenharia surgiu a partir do esfacelamento da Vega Sopave envolvida no escândalo de corrupção que ficou conhecido como a máfia do lixo da cidade de São Paulo, na década de 90. Em sua página na rede mundial de computadores a Vega Ambiental informa que foi constituída em 1997 e que herdou a experiência de sua antecessora, embora não faça alusão à Vega Sopave, apesar de ter mantido sua logomarca.
A Vega Sopave possuía ligação com a construtora OAS, a Cavo pertence à empreiteira Camargo Corrêa. A promiscuidade nas relações entre concessionárias de lixo e empreiteiras se estende a uma fatia do poder público. Os dois segmentos empresariais, ao lado dos bancos, são identificados no cenário nacional como os principais agentes financiadores de campanhas políticas nacionais.
Contra a Camargo Corrêa pesa ainda outra grave acusação: a construtora é identificada como uma das empresas responsáveis pelo financiamento da tortura e da repressão política contra os opositores da ditadura militar. Segundo relatos de ex presos políticos, a Camargo Corrêa financiou, por exemplo, a implantação da Oban (Operação Bandeirante), embrião do famigerado DOI-Codi (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), um dos centros de tortura mais temidos do país, no final da década de 60 e início dos anos 70.
Concessão pública
Tanto a Loga quanto a EcoUrbis têm concessão da Prefeitura de São Paulo para operar os serviços na cidade até 2024. Em seu sítio na internet, a Ecourbis informa que é uma das maiores empresas do segmento na América do Sul nas áreas de coleta, transporte e destinação de resíduos. A empreiteira Queiroz Galvão encabeça a lista dos principais acionistas da empresa.
Juntas, as duas concessionárias recolhem 15 mil toneladas do lixo que é produzido diariamente na capital. Deste total, 9.630 toneladas são de resíduos domiciliares. De acordo com dados apresentados pela Secretaria de Obras da prefeitura paulistana, ao qual está vinculado o Departamento de Limpeza Urbana, Limpurb, apenas 20% desses
resíduos são passíveis de reciclagem.
Mas o percentual efetivamente processado na reciclagem está muito aquém deste índice. A Prefeitura informa que 7% do lixo reciclável recolhido é destinado ao processo de triagem. O baixo percentual, mesmo assim, é questionado e desmentido por especialistas e pessoas que atuam na área de reciclagem. “Esse número não é real, chega muito menos material para os cooperados reciclarem”, sustenta a presidente da Cooperativa Granja Julieta, Mara Lúcia Sobral Santos.
“A base de cálculo da Prefeitura de São Paulo está errada. O cálculo deve ser feito em outro patamar. Para se chegar ao percentual que uma cidade efetivamente recicla de seus resíduos, deve-se levar em conta o total do lixo produzido naquele município”, comenta Ana Maria Luz, do Instituto Gea – Ética e Meio Ambiente, organização da sociedade civil que presta assessoria na implantação de programas de coleta seletiva e reciclagem.
A Prefeitura de São Paulo possui 16 centrais de triagem, ou cooperativas como os catadores preferem chamar, espalhadas pela cidade, onde aproximadamente mil pessoas trabalham na separação do material reciclável na condição de cooperados. Os números são irrisórios, perto da demanda de trabalhadores que querem atuar nessa área e das dimensões geográficas da capital paulista.
As cooperativas, geridas pelos próprios trabalhadores, funcionam como agentes catalisadores na geração de renda. Antes da crise, algumas cooperativas chegaram a distribuir entre seus associados em torno de R$ 1.200 mensalmente.
Mas a falta de vontade política por parte da Prefeitura de São Paulo na efetivação de novas centrais de triagem, inviabiliza o acesso de outras pessoas a essa possibilidade de trabalho e renda. A Prefeitura não se dispõe nem mesmo a receber os recursos que são oferecidos pelo Executivo federal para a implantação de novas cooperativas de reciclagem.
O governo federal disponibilizou para a Prefeitura de São Paulo R$ 5.965 milhões do Orçamento Geral da União, vinculados ao PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), para a construção de 10 galpões, equipados com prensas enfardadeiras, balanças mecânicas, carrinhos plataforma e empilhadeiras, mas a Prefeitura paulistana não demonstrou interesse em receber esses recursos.
Em ofício encaminhado ao prefeito Gilberto Kassab, em 5 de maio de 2008, o secretário nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades, Leodegar Tiscoski, solicita que a Prefeitura entregue os projetos de engenharia e os respectivos planos de trabalho para a Gerência de Desenvolvimento Urbano da Caixa Econômica Federal, para a agilização dos empreendimentos.
Além de não tomar as medidas necessárias para a efetivação das cooperativas, a Prefeitura de São Paulo solicitou que o governo federal reduzisse de 10 para cinco, o número de galpões a serem construídos e equipados. A Prefeitura também quer reduzir o tamanho das áreas dos terrenos onde serão construídas as novas cooperativas de reciclagem.
O diretor de Desenvolvimento e Cooperação Técnica do Ministério das Cidades, Manoel Renato Machado Filho, em ofício encaminhado, em 23 de junho de 2009, à Caixa Econômica Federal, onde os recursos estão depositados à disposição da prefeitura paulistana, esclarece que o governo federal não aceita a proposta de redução do número de galpões, apresentada pela Prefeitura de São Paulo.
“O Ministério das Cidades em momento algum abriu mão da quantidade de galpões a serem construídos.” Ele registra que o número de novas cooperativas foi acordado com o Movimento Nacional de Catadores. A única concessão feita é em relação à área dos terrenos. “Será aceita a redução máxima de 5% na área do galpão, desde que mantida a capacidade de processamento da unidade e a capacidade de inserção dos catadores anteriormente prevista”, enfatiza o texto.
A contrapartida da prefeitura paulistana exigida pelo governo federal, para a efetivação do empreendimento, é a de que o Executivo municipal entre com R$ 228 mil. Os recursos federais continuam à disposição do município, mas a construção dos galpões não saiu do papel.
Um número considerável de pessoas que poderia extrair o sustento dessas 10 novas cooperativas, se já estivessem em funcionamento, continua a ser penalizado pela falta de vontade política e até mesmo desprezo com que o Executivo municipal trata essa questão.
“São Paulo está fora de seu tempo, não priorizou esse tema”, critica o deputado federal Paulo Teixeira (PT-SP) ao se referir à ausência de uma política pública consistente por parte da Prefeitura de São Paulo, para a reciclagem do lixo da cidade. Teixeira teve um projeto de lei vetado em 2005, pelo então prefeito José Serra, quando o petista ainda era vereador na capital paulista. O projeto previa a possibilidade de contratação dos catadores pela Prefeitura. Se a lei tivesse sido aprovada, os catadores teriam o direito de receber um valor mensal da Prefeitura pelo trabalho que desenvolvem nas centrais de triagem de material reciclável.
“A Prefeitura de São Paulo, ao invés de ajudar essas pessoas, só trabalha contra”, desabafa o deputado. Ele conta que o Executivo federal apresentou projeto para criar um marco regulatório nessa área e que em breve deve ser aprovado pela Câmara dos Deputados, em Brasília. Pela lei de saneamento, os catadores também podem ser contratados pelo Executivo, com dispensa de licitação.
O descaso da prefeitura paulistana é total, não leva em consideração nem mesmo o papel de agentes ambientais que os catadores desempenham na cidade. Apesar de imprescindíveis, essas pessoas se tornaram invisíveis aos olhos do poder público municipal e da maioria da sociedade. Convivem lado a lado com os mais sofisticados
automóveis, nas principais vias da cidade, puxando suas pesadas carroças sem chamar a atenção.
Só são notados quando o peso excessivo de seus carrinhos abarrotados de material teima em faze-los manter um ritmo mais lento do que o habitualmente tolerado nos tradicionais congestionamentos que paralisam o fluxo na cidade.
“Às vezes somos xingados por alguns motoristas que acham que estamos atrapalhando o trânsito”, revela a catadora Vilma Conceição Lopes, de 42 anos e mãe de 11 filhos, sobre o comportamento de alguns condutores que se irritam com a presença das carrocinhas à sua frente.
Vilma não está associada a nenhuma cooperativa de reciclagem. Ela recolhe o material individualmente pelas ruas do Grajaú, bairro pobre da zona sul, onde reside. “É tudo o que eu mais queria”, ressalta, enquanto puxa a carroça, ao se referir ao desejo de se tornar uma cooperada. Vilma mantém a família com a venda do que recolhe pelas ruas e com as doações que recebe. O marido faz bicos. Ninguém sabe ao certo quantas pessoas vivem às expensas do lixo paulistano, em circunstâncias semelhantes à de Vilma, mas se considera que esse número não é pequeno. É uma legião de famélicos, que aumenta dia a dia em função das dificuldades impostas pela crise econômica. Trabalhar como catador é uma das únicas alternativas que restam para conseguir o sustento da família.
Lúcia Rodrigues é jornalista
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