sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

ENTREVISTA MINISTRO PAULO VANNUCHI

Caros Amigos

“Vamos abrir os arquivos, punição é com o Judiciário”

Participaram: Bárbara Mengardo, Cecília Figueira de Mello, Gabriela Moncau, Hamilton Octavio de Souza, Júlio Delmanto, Lúcia Rodrigues, Otávio Nagoya, Renato Pompeu, Tatiana Merlino. Fotos Jesus Carlos

Atual titular da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, o ministro Paulo de Tarso Vannuchi tem sob a sua responsabilidade assuntos delicados e fundamentais para o povo brasileiro, entre os quais a abertura dos arquivos da ditadura civil-militar (1964-1985), o esclarecimento das mortes praticadas por agentes do Estado, a constituição de uma Comissão de Verdade e Justiça, além de todas as outras violações dos direitos humanos que ocorrem cotidianamente pelo país afora, em especial as violências policiais contra os movimentos sociais e as populações pobres – jovens e negros – das favelas e das periferias das grandes cidades.

Nesta entrevista exclusiva para Caros Amigos, o ministro Vannuchi fala um pouco sobre a sua trajetória de vida e o que pensa das questões mais candentes da atual conjuntura dos direitos humanos no Brasil. Vale a pena conferir.

Hamilton Octavio de Souza - A gente começa com um pedido tradicional, que é você falar um pouco da sua trajetória, onde nasceu, estudou, qual a profissão, como chegou a ministro dos direitos humanos.
Paulo Vannuchi - Bom, eu sou paulista de São Joaquim da Barra, cuja maior glória é Rolando Boldrim. É uma cidade da região de Ribeirão Preto. Sou filho de um professor de português muito erudito, com longos anos de seminário, e minha mãe era do lar. O meu pai era uma figura que, no tempo da missa em latim, ele transmitia, ia traduzindo a missa pela rádio local. Ele era muito querido, é nome de uma praça hoje lá. Vieram com ele os rudimentos de um humanismo cristão, e muito precocemente eu comecei a ter a preocupação com a questão política e social, muito precocemente.

Lúcia Rodrigues - Com quantos anos?
De um jeito confuso, mas eu chorei no dia da morte do Kennedy. Em seguida comecei a ver nas festas, tinha 12 ou 13 anos, o debate, o Brizola, o Grupo dos 11, e nas festas dos adultos, eu do lado, comecei a ter simpatia pela turma dos brizolistas. Eles eram muito exaltados, na cidade, muito poucos, mas eu percebia que eles eram uma novidade ali. Um ou outro professor da escola, ligado ao PSB da época, colocou algumas idéias, então veio esse despertar. Eu lembro que, quando eu voltava de bicicleta da 4ª série, um amigo me pára pra contar que o João Goulart tinha sido deposto, e eu fui pra casa, chorei, me tranquei no banheiro. Meses depois veio a notícia de que meu tio Aldo foi preso, padre, irmão do meu pai, 11 irmãos, o mais querido, bem mais novo do que meu pai, ficava na idade do meio, mas preso por quê? Preso como comunista, era da JOC (Juventude Operária Católica) de Sorocaba. Hoje ele é reitor da Uniso, não é mais padre, e então acho que aí nasceu a consciência política inicial minha, do meu irmão, do meu primo Alexandre, ele é de 1950, como eu, eu sou de maio e ele de outubro.

Tatiana Merlino - Quando você saiu de São Joaquim da Barra?
Em 1967 foi meu último ano de colegial, já querendo vir pra São Paulo, onde eu comecei a fazer o cursinho de medicina, o Cursinho do Grêmio, que pertencia ao grêmio da Faculdade de Filosofia. Era um bom cursinho para humanas, e que tinha acabado de sofrer o racha que gerou o Equipe. O Equipe sobreviveu e o do grêmio morreu. Eu fui o único aluno do cursinho do grêmio que entrei na medicina da USP. E logo me liguei ao Centro Acadêmico, que, coincidentemente, começava uma nova gestão afinada com a nova UEE, que tinha sido liderada pelo Zé Dirceu. A AP (Ação Popular) tinha a hegemonia nacional. E aí eu já entro logo pro Centro Acadêmico, na eleição daquele ano eu já vou ser eleito secretário. O presidente do centro foi preso antes de mim, o presidente seguinte foi morto. Na medicina nós fazíamos um trabalho muito interessante, não foi fazer só luta armada.

Tatiana Merlino - Você esteve um mês na clandestinidade?
É. Eu consegui escapar, vejo que estão atrás de mim, tento ir atrás para descobrir e descubro de um amigo que a organização tinha pedido um carro emprestado, um carro legal, a organização clandestina tinha carros ilegais. Dez dias depois eu devolvi o carro e ninguém me contou o que foi feito com ele, o meu amigo foi preso porque esse carro tinha sido visto na Belém-Brasília, em alguma região de trabalho rural, de campo, com alguma prisão ocorrendo por lá, e aí quando ele foi preso, logicamente, disse que tinha emprestado o carro para mim, e eu tava no período de conversar com a organização o que eu ia fazer, se eu ia me engajar na militância clandestina ou não, ou se eu ia sair do país, na época era uma alternativa clara, né?

Lúcia Rodrigues - Qual era sua função?
Minha função era pequena, de um militante de uma organização que, em novembro, o Marighella é morto. E começa um fluxo de prisões que rigorosamente não param mais. Em outubro de 70 o substituto dele, Câmara Ferreira, é localizado e morto, e o que aconteceu neste ano e sobretudo depois da morte dele, três meses meus de liberdade, é que havia uma aceleração muito clara do engajamento. Você ficava chamando pessoas que estavam há poucos meses na organização para assumir tarefas. Então nesse momento em que fui preso estava começando a participar dos primeiros treinamentos de operação armada, nenhuma operação de envergadura, nenhum cofre do Ademar, nenhum seqüestro, nada disso, coisinhas pequenas. Eu fui preso em 71, fiquei preso até 76.

Hamilton Octavio de Souza – Quando passou a atuar na campanha do PT?
No governo paralelo o Instituto Cidadania foi o espaço de começar a pensar concretamente a idéia de “vai ser governo”. Então, rigorosamente, o programa de 89 tinha sido um grande improviso que já está todo permeado do sentido de mudança, mas tem coisas do tipo “estatização do sistema financeiro”. Ou seja, a gente acreditava, ali em 89, que seria possível ter um banco só chamado Banco do Brasil, e não tinha Bradesco, não tinha Itaú, e tal. Não sei se seria possível, no caso de vitória, mas da campanha de 89 o Lula saiu com duas coisas: primeiro a idéia de que a gente podia ganhar a eleição. Que, depois de 94, ela caiu um pouco, eu participei muito de conversas se o Lula. Ele passou dois anos querendo que eu fizesse uma carta para ele, para explicar porque ele não iria ser candidato mais. Até 98 ele não era, na hora “agá” o partido o convenceu a ser, numa eleição que estava perdida e eu sabia, eu achei um erro cabal. Depois mudei, porque talvez ele não tivesse vencido a de 2002 se ele não tivesse sido candidato, tem esse fenômeno de recall. Mas aí, depois de 98, ele ficou atazanando e eu falei “Lula, você não devia ser candidato nessa agora, porque o Fernando Henrique ia ganhar, mas na próxima você tem de ser, porque não vai mais ter Fernando Henrique e tal”. E ele, de vez em quando, “e a carta? E a carta?” E em 2000, a eleição municipal deixou claro que – a imprensa escondeu e nós também não soubemos mostrar bem – foi a primeira eleição que o número absoluto de votos no PT ganhava a eleição se fosse federal, e era uma coisa claríssima, porque a eleição de um presidente é mais favorável ao PT do que uma eleição de prefeitos.

Hamilton Octavio de Souza - Como convencer as Forças Armadas a esclarecer o que aconteceu durante a ditadura?
Eles fizeram a transição e tiveram a oportunidade de se meter em crises políticas no Brasil, mas não se meteram. No Collor, ficaram quietos e isso tem que ser levado em conta, não no sentido de querer festejar, mas mostrar a análise fria da sociedade que não
é um conjunto de Força Armada que esteja com atitudes de desafio à constitucionalidade, à tentativa de golpe de Estado. Bom, mas agora o que acontece? Quando chega nesse tema de apuração da verdade, é que provavelmente o sentimento corporativo se fecha. Provavelmente quem está no comando hoje não tem a mão suja de sangue, mas foi aluno de, foi subordinado de... Então, nesse sentido é que é preciso fazer essa transição, o esforço dos direitos humanos sem espírito revanchista e de trata-los como inimigos. Pelo contrário, quando eu posso, no meu discurso, eu digo, falo “nós temos que fazer essa transição, esse processamento para nos orgulhar de nossas Forças Armadas”.

Tatiana Merlino - A criação de uma Comissão de Verdade e Justiça não seria pra fazer isso?
É a oportunidade e é o passo indispensável, é o sine qua non. Então, o centro da minha atividade, até do ponto de vista pessoal, íntimo, sem eu querer, porque eu sei da minha biografia. Porque eu sei que ao me dedicar a um tema desses haverá quem diga: “esse cara é um ressentido, ele tá preocupado com a tortura que ele sofreu”. Nesse sentido, a alegria que eu tenho quando eu estou nesse processo agora da 8ª Conferência Nacional de Criança e Adolescente, Direitos Humanos é isso. Quando eu estou na 1ª Conferência LGBT, Direitos Humanos é isso. Quando eu tô com as pessoas com deficiência, agora, o que eu tenho consciência é que esses temas todos, o Estado, na sua democratização, veio processando, e o outro não, ficou com bloqueio, ficou com recalque, que nós podemos conversar longamente sobre ele, o meu esforço é pra fazer isso e convencer as Forças Armadas de que se a Justiça mandar pra cadeia uma dúzia, duas dúzias de torturadores, como a Argentina, o Chile, o Uruguai fizeram, o Paraguai, talvez faça agora, mas muito longe, muito oposto de isso representar uma vergonha para as Forças Armadas. Representará para o Brasil a manifestação de que as Forças Armadas aprenderam a distinguir até porque, no período mais terrível do regime, que certamente o Alto Comando de Brasília sabia do que se passava e autorizava, cuidava de não botar nenhuma regra de acusação para tortura.

Lúcia Rodrigues - Quem mais no governo tem que ser convencido disso?
Eu acho que muita gente no governo precisa ser convencida, porque tem muita gente no governo Lula que tem essa característica, que talvez os próximos governos ainda tenham. Enquanto não houver uma profunda reforma política que viabilize isso, os governos serão de coalizão. Porque na aposta da via democrática parlamentar, em que o
parlamento não é visto, e daí eu volto a Norberto Bobbio e ao comecinho de Gramsci que, fala sobre o estado ampliado que se abre à disputa entre o interesse de classe no seu interior. Então, o Brasil de 2009 é um exemplo claríssimo do Estado ampliado, ampliadíssimo, o sujeito que veio de pau-de-arara, que foi preso e tal, virou presidente. Você precisa ter maioria no parlamento, a não ser que você queira romper com a regra e fazer outro tipo de enfrentamento.

Tatiana Merlino - É por isso que os arquivos não foram abertos?
Existe outra proposta de fazer o enfrentamento. Era legítima, eu já defendi isso quando eu tinha 19 anos. Tenho o maior respeito pelo jovem que eu fui. Eu tenho muita certeza de que em muitos aspectos ele foi um jovem melhor do que eu sou. E em outros aspectos eu acho que estou melhor. No fundo não acreditam que será possível qualquer transição com o parlamento, ele vai se aperfeiçoar, terá que ser visto, ele é uma tribuna de debate, de denúncia, para em algum momento criar uma alternativa da ruptura. Pode ser que só a história mostrará isso. Eu não acredito nisso, eu acho que nesse momento
a estratégia é de ir avançando à democracia. Para isso, precisa de ter maioria parlamentar. E o eleitor, nesse momento, racha o voto no meio. Ele dá metade para o Lula e metade para o anti-Lula. Em termos matemáticos, ele põe 100 deputados do Lula e 400 anti-Lula. Então obriga a ter um ministério em que o PMDB tem virado o fiel da balança, talvez saia de novo e que vai ter áreas como Comunicação, Hélio Costa, Agricultura, Stephannes, Defesa, Jobim, que são figuras que têm uma história de vida, um acúmulo inteiramente diferente do Lula, do PT etc. Então nesse sentido é presidencialismo de coalizão. E o presidente Lula, a quem cabe o papel de arbritrar, ele vai definir essa discussão? Ele tem sobre esse tema, em primeiro lugar, uma cabeça, uma visão, uma cultura muito diferente da minha. No meu longo período de assessor nunca tive confusão sobre isso. Até a cabeça do irmão dele Frei Chico, comunista, torturado. Eles sempre tiveram opiniões diferentes. Segundo, nesse momento o Lula é uma figura política que tem em suas preocupações centrais as ideias de moderação e intermediação. Às vezes eu brinco dizendo que, nesses 30 anos de trabalho com o Lula, posso ter ajudado ele em alguma coisa. Eu me sinto muito aluno, brinco muito. Já disse isso pra ele. O Lula quer mudar completamente o Brasil, profundamente, sem deixar nenhuma injustiça em pé. Só que ele gostaria muito de fazer isso sem desagradar ninguém.

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