Por Marcelo Salles
Golpe de Estado em Honduras?! Ué, mas essa época de golpes na América Latina não havia terminado? Agora a região não vive um período democrático? Não era por isso que aquele papo de “revoluções e ideologias” estava fora de moda, sendo cultivado apenas por uma meia dúzia de românticos saudosistas?
Pois é, mas foi o que aconteceu. Para o desgosto das corporações de mídia e seus representados, as contradições políticas e sociais ficam cada vez mais evidentes no continente americano. E quando as contradições ficam evidentes, as tenebrosas transações, que adoram a calmaria, começam a aparecer. E máscaras começam a cair.
No domingo pela manhã, 28 de junho, cerca de 200 soldados seqüestraram o presidente Manuel Zelaya e o enviaram à Costa Rica. Segundo a rádio local “Es Lo De Menos”, vários integrantes do gabinete foram presos e existem ordens de prisão para dirigentes de movimentos sociais, como a Via Campesina. A Telesur informou que também foram seqüestrados os embaixadores de Cuba, Venezuela e Nicarágua. O presidente do Congresso, Roberto Micheletti, assumiu o poder com o apoio do das Forças Armadas e do Judiciário.
No dia do golpe os telefones celulares não funcionaram, assim como a eletricidade em alguns pontos deste país de 8 milhões de habitantes – o que prejudicou muito o trabalho da imprensa independente (sem que isto tenha sido alvo de críticas como no caso iraniano).
A Organização dos Estados Americanos deu prazo de 72h para a recondução de Zelaya à presidência, sob pena de expulsão de Honduras de seus quadros. Não houve um país sequer a defender os golpistas, pelo menos em público. Brasil, Itália, Colômbia e outros países chamaram de volta seus diplomatas. Lula disse que não vai reconhecer o novo governo. A Venezuela de Chávez ameaçou usar a força. Paralelamente, movimentos sociais e partidos de esquerda no mundo todo divulgaram notas e organizam manifestações de rechaço ao golpe.
Por outro lado, os Estados Unidos mantiveram uma posição dúbia. Apesar da declaração de Barack Obama, que pediu respeito às “normas democráticas”, a secretária de Estado Hillary Clinton negou o corte das relações comerciais e o embaixador estadunidense segue no país, o que caracteriza ao menos conivência com os golpistas.
Os bastidores
Os interesses estadunidenses começam a ficar mais visíveis quando olhamos para a balança comercial de Honduras: os EUA são o destino de 70% das exportações (café, bananas, camarões, lagostas, carne, zinco e madeira), ao passo que 55% das importações vêm do mesmo país, com destaque para máquinas e equipamentos para transporte, matérias primas para indústria, produtos químicos e combustíveis. O déficit hondurenho gira em torno de US$ 1 bilhão.
A CIA destaca em sua página na Internet que “investimentos em fábricas de maquilagem e setores de exportação não-tradicionais vem começando a diversificar a economia”. Talvez o projeto ianque para o país fosse transformá-lo, gradualmente, em base de trabalho escravo e semi-escravo, assim como fazem no Haiti e na República Dominicana, onde os trabalhadores recebem 1 ou 2 dólares diários para produzir calças, agasalhos e tênis que depois serão vendidos a preços duzentas vezes maiores nos países desenvolvidos.
Outro dado importante é sua localização geográfica. Honduras está no centro da América Central, entre Nicarágua, El Salvador e Guatemala. O domínio de seu território é, portanto, fundamental para manter todo o continente sob controle. Na década de 1980 isso ficou muito claro quando os EUA transformaram Honduras numa base militar de onde atacavam o governo sandinista na Nicarágua – isso com o dinheiro sujo da venda de armas para o Irã – e assim impediam a disseminação do ideário marxista pela região. E hoje em dia, quando os EUA perdem influência na América do Sul, é fundamental reter o controle sobre o restante da América Latina.
O golpe de 29 de junho acontece justo no momento em que Zelaya se aproximava da Alternativa Bolivariana para as Américas. Seguindo o exemplo dos governos sul-americanos que mudaram suas Constituições, o presidente deposto queria incluir nas eleições gerais de 29 de novembro uma consulta para aprovar a convocação de uma Assembléia Constituinte. Como o Congresso e o Judiciário haviam negado essa possibilidade, Zelaya decidiu seguir adiante com a consulta, ainda que seu valor fosse apenas simbólico. Como os militares se recusaram a distribuir as urnas, o presidente demitiu o chefe do Estado Maior Conjunto, Romero Orlando Vasquez Velasquez, que não acatou a ordem e teve apoio dos demais comandantes castrenses, assim como do Congresso e do Judiciário.
A Escola das Américas
Vasquez é graduado na Escola das Américas, assim como outros militares hondurenhos – e latino-americanos em geral. Por pelo menos duas vezes Honduras foi diretamente controlada por ditadores formados na Escola das Américas (1975 e 1980). O congressista estadunidense Joseph Kennedy disse certa vez: “A Escola das Américas do Exército dos Estados Unidos é uma escola que produziu mais ditadores do que qualquer outra escola do mundo”.
No dia 1º de julho, o presidente golpista decretou Estado de Sítio. Qualquer pessoa pode ser detida em qualquer lugar e ser mantida na prisão sem acusação formal. As liberdades civis foram suspensas, o toque de recolher foi imposto e os cidadãos estão proibidos de se manifestarem. Apesar de tudo isso, o povo hondurenho segue nas ruas. Segundo Arturo Wallace, correspondente da BBC, cerca de duas mil pessoas protestam contra a ditadura recém-instaurada. O jornalista disse ainda que “os meios de comunicação transmitem apenas a versão oficial e os canais de notícias internacionais, como a CNN e a Telesur, estão fora do ar”.
As corporações de mídia no Brasil receberam a notícia do golpe com cautela. Apesar de a CNN ter entrado na cobertura no próprio domingo, a TV Globo, maior emissora do país, não interrompeu sua programação e deixou o assunto para segunda-feira. Na quarta-feira à noite, a matéria do Jornal da Globo não usou o termo “ditadura” e apenas uma vez falou em “golpe”. Em nenhum momento contextualizou os interesses dos EUA na região. Para mostrar “imparcialidade”, ouviu um cidadão a favor e outro contra “a crise política” instaurada no país.
O golpe de Estado em Honduras é mais um capítulo na disputa pela hegemonia na região. De um lado, o bloco de esquerda encabeçado por Hugo Chávez. De outro, o velho esquema capitalista patrocinado pelos ianques. A posição de Zelaya é delicada, pois seus inimigos controlam os outros dois poderes da República (Judiciário e Legislativo), além das Forças Armadas. E contam com o apoio financeiro dos EUA. A seu lado estão os movimentos sociais, que mostraram boa capacidade de mobilização, e a comunidade internacional – que no geral não parece muito disposta a converter os discursos em ações.
Os próximos dias dirão se Honduras seguirá sob o controle estadunidense ou se as forças populares conseguirão redefinir os rumos desse país centro-americano e, por extensão, varrer o imperialismo do continente. Seja como for, delineia-se na região um cenário de embate, vivo, que escancara a atualidade de golpes e revoluções, de utopias e romantismos. Um contexto que não interessa ao capitalismo internacional porque torna visíveis suas mentiras e contradições; e que, por isso mesmo, deve ser aproveitado por quem luta por um mundo mais justo, humano e solidário.
Marcelo Salles, jornalista, é coordenador de Caros Amigos no Rio de Janeiro, editor do Fazendo Media (www.fazendomedia.com) e integrante do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.
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